Para falar de Kevin Khatchadourian e transformá-lo em um dos personagens ficçionais mais assustadores de todos os tempos, a jornalista e escritora britânica Lionel Shriver precisou ser recusada por mais de 30 editoras. Não é difícil entender as razões de tais recusas e rejeições depois de terminar as 463 páginas de seu romance "Precisamos falar sobre o Kevin".
A colunista do jornal britânico The Guardian arriscou-se a contar uma história que estamos nos acostumando - se já não nos acostumamos de vez - a nos deparar aos abrirmos ou assistirmos aos jornais todos os dias. A historinha de um menino - aqui, com 16 anos - que decide entrar armado numa escola nos Estados Unidos e metralhar alguns alunos, professores e funcionários da instituição. Os fatos são, como a autora descreve, que esse tipo de assombração já não nos assusta, nem holocaustos, nem estupros, nem trabalho escravo infantil. Honestamente, a assombração é contrária, quando alguém que você não conhece te ajuda, sorri para você, te deseja bom dia, aparenta simpatia. Uau, que alívio viver neste mundo contemporâneo que infelizmente (ou felizmente, vai saber?), afastamos, ou pelo menos, tentamos afastar os problemas sérios e tristes que não conseguimos entender, processar, internalizar e apreender cognitivamente. Porque se depararmos com eles, com as famílias envolvidas, com as pessoas que morreram e que não costumam ter seus nomes citados - são apenas um número de vítimas para ser catalogado - e principalmente com a família do adolescente assassino e perverso, fica difícil continuar aparentando uma certa normalidade diante de tanta tragédia.
Inicialmente e aparentemente a crítica de Lionel poderia ser aos norte-americanos e seu estilo de vida, onde impera o funcionalismo, um país em que ninguém morre de fome ou em filas de serviço médico e assistencial, e onde tudo pode ser comprado "a não ser um senso de finalidade e bons propósitos" como foi escrito na revista Forbes. Mas a talentosa escritora não se resume à eles, ela fala por todos nós.
Ela não só decorre sobre o massacre em si, mas a estrutura da família, das nações e do senso de responsabilidade que supostamente deveria ser universal.
O livro é escrito em forma de correspondência de Eva Khatchadourian (a mãe de Kevin) ao seu ausente marido. E é através de suas cartas que progressivamente ela tenta analisar e entender onde foi que ela errou como mãe do menino Kevin. (Eu prefiro a palavra "menino" ao invés da tão utilizada palavra "monstro"). Psicanalíticamente seria improvável que um menino matasse 11 pessoas se essa mãe tão cheia de culpas depois do dia fatídico não tivesse errado, mas aqui, no livro de Lionel, ela não tenta fugir de seus erros e por mais perturbador que algumas afirmações possa parecer, a mãe é de uma sinceridade que pode deixar algumas outras mães bastante descontroladas.
Essa mãe ficçional deveria ser exemplo para outras tantas que preferem ignorar o que se passa dentro da própria casa. Com o passar dos anos, Eva entende perfeitamente que seu filho Kevin não é o que poderíamos chamar de um bom filho ou mesmo uma boa pessoa, e por muitas vezes declama em bom tom que não era esse o filho que ela esperava. As perguntas mais frequentes aqui são: É possivel odiar seu próprio filho? É possível, mesmo que sem atrocidades brutais como físicas e abusos de pais, uma crinça branca, de clásse média estoure os miolos dos outros por falta de atenção materna? É possível perdoar um caso assim? E talvez a mais importante: Até que ponto essas crianças são inteiramente culpadas por seus atos e até onde vai a consciência e responsabilidade por seus atos? Citando um trecho: "Você só consegue afetar quem tem consciência. Só pode punir quem tem esperanças para serem frustradas ou laços a serem cortados. Você na verdade, só consegue punir quem já é pelo menos um pouquinho bom". Difícil responder com os conceitos morais contemporâneos sobre o que é bom ou ruim, moralmente aceito ou não.
Mas Eva não é uma mãe ruim, apenas uma mãe que não estava preparada para colocar no mundo uma criança, uma mãe que embora tenha tentando por algumas vezes se comunicar com o filho, desiste por um longo tempo, por cansaço, por incredulidade de que as coisas mudem, impotência, culpa, ódio, amor.
Em que momento exato deixamos de pensar em fazer algo prejudicial para de fato cometê-lo?
Esses adolescentes podem ter traços que acreditamos ser de seres humanos? Em algum momento, sentem culpa, remorso? Segundo a nosologia psiquiátrica, não. Mas como costumo sair um pouco do que é convencionalmente estabelecido, acredito que sim, porque se há em nós sempre, marcado como tatuagem, atos e pensamentos animalescos e instintivos, por que não haveria o contrário? Por que não poderia haver traços de amor nos atos mais cruéis? Posso estar sendo bastante otimista no momento, mas já deixo claro que mesmo muitas vezes negando, sou humanista de carteirinha.
E por último e não mais importante pra mim é o fato de que socialmente poderíamos entrar num consenso de que "monstros" não são criados sozinhos, eles são ajudados a se transformarem em monstros. Então a responsabilidade passa a ser nossa, da sociedade que tenta de todas as maneiras fingir que o problema não é com ela. Citando mais uma vez o livro de Lionel: "Achava o rosto do nosso filho esperto e contido demais, e a mesma máscara evasiva de opacidade me fitava de volta quando eu escovava os dentes".
O livro me causou calafrios, mau-estar, ânsia, repugnação, mas me causou um sentimento maior de compaixão, não pelo menino/monstro, mas por uma mãe que antes do dia fatal, tentava desesperadamente entender àquele que ela denominava "filho", odiando e amando.
Um livro imprenscidível nos dias atuais.