sexta-feira, 31 de agosto de 2007

Roteiro Social da Felicidade.

Vamos ao tesouro da sabedoria popular. Conta-se que um louco procurava algo sobre o facho de luz de um poste. Outro louco se aproxima, pergunta o que ele estava procurando e obtém como resposta uma chave! O segundo louco pergunta se ele tem certeza de que perdera a chave naquele lugar. O primeiro diz que não, mas só ali havia bastante luz para que se pudesse ver alguma coisa. O segundo, espantado, diz que o primeiro é louco e propõe que ambos procurem a chave no escuro.

A emenda é tão ruim quanto o soneto. Procurar o que se perdeu no lugar errado, só porque está iluminado, ou no lugar certo, mas onde nada se pode enxergar, são duas saídas insensatas, pois ou nunca encontraremos o que queremos achar, ou, se acharmos, não poderemos reconhecer o que encontramos.

A anedota pode metaforizar, para alguns, a cegueira do destino humano, às voltas com o malogro inelutável da ilusória realização do desejo. Entre o desejo e o objeto existe sempre o empecilho da luz que nada ilumina ou da escuridão que nos impede de reconhecer, quando encontrarmos, aquilo mesmo que estamos procurando. Mas, como disse Henry James, “nosso destino jamais se frustra”. A idéia do insucesso “intrínseco” à natureza do desejo pode ser temperada com uma dose salutar de pragmatismo. Em vez de sucumbir à sedução da impossibilidade, por que não experimentar outra saída? Por exemplo no caso da anedota, por que não pensar em usar uma boa e simples lanterna? É isso que William James dizia, ao evocar o adágio escolástico: “Onde encontrar uma contradição, faça uma distinção”. Feita a distinção, o enigma ganha outra descrição, e, quem sabe, virão a surgir novos fachos de luz, novas lanternas e novos parceiros na busca do que desejamos.

E isso me lembra o filme de Todd Solondz, chamado aqui no Brasil de “Felicidade”, podemos usar da mesma anedota. A impressão que fica, ao assistir ao filme de Todd Solondz, é a de “loucos em busca de uma chave”. O diretor evita, com inteligência, a atitude de palmatória do mundo diante dos personagens. Não se trata de afirmar que os adultos se infantilizaram, que as crianças perderam a infância ou que as famílias de hoje, artificiais como bonecos playmobil, perderam o script do que fazer ou dizer, trata-se de mostrar o novo roteiro social da “felicidade”: a confissão e a autenticidade. Em nome da autenticidade, os indivíduos se sentem autorizados a confessar tudo o que sentem ou pensam, pouco importa o que decorra da confissão.

Á primeira vista, tudo parece uma honesta reação à hipocrisia dos velhos tempos. No novo código moral, toda ocultação é mentira, portanto qualquer sandice dita vale cem sabedorias caladas. De fato, é possível que algo de honesto exista em tudo isso. Mas, entre o compromisso com a verdade e a compulsão da confissão, existe um formidável abismo moral.

No filme, o que sobremaneira constrangedor não é a desenvoltura com que os personagens expõem as fantasias sexuais ou agressivas: é a incapacidade de dizerem “não” à ordem cultural de confessar! Fazer das relações humanas cópias de confessionários religiosos ou divãs de psicoterapias não é ser mais honesto, sincero ou autêntico: é desistir do exercício da autonomia.
Como qualquer forma de consciência de si, a verdade sentimental obtida por confissão se apóia em crenças e regras de conduta que não revelam, de imediato, seus objetivos morais implícitos. Uma dessas crenças é a de que, ao confessarmos o que sentimos, estamos descobrindo algo sobre nós mesmos, até então enterrado pela dissimulação social ou pela covardia emocional. Quem confessa o que sente, mesmo ao preço de sofrimentos, sente o alívio heróico da justa causa. Isso não é nenhuma descoberta, ela apenas inventa uma identidade pessoal que, sem a prática da confissão, deixaria de existir. Assim como a confissão religiosa criava a identidade do pecador, a confissão sentimental cria a identidade do sujeito emocionalmente maduro, essa figura da cultura narcisista.
A verdade dos nossos desejos, impulsos ou inclinações é “mais verdadeira” do que a verdade da sensibilidade à dor e à humilhação do outro. Em uma cena do filme, o aspecto grotesco da cultura da confissão aparece em toda violência: diante do filho, preocupado com os mistérios da sexualidade masculina, o pai não hesita em dizer o que lhe vem à cabeça. A autenticidade de seus sentimentos tem mais valor moral do que a delicadeza para com o sofrimento e a perplexidade afetiva do filho.

Os personagens de “Felicidade” não são maus, perversos ou “seres reprimidos” ávidos por liberação; são, pura e simplesmente, indivíduos inconseqüentes e irresponsáveis, em relação às atitudes morais que reclamam para si. Ou seja, todos querem ser compreendidos, tolerados, perdoados e inocentados no que sentem e dizem, mas nenhum, duvida que a prática da boa vida consiste, exclusivamente, em saber e dizer “quem se é” em matéria de sexo e agressividade.

Passamos da hipocrisia vitoriana, em que o inferno era o outro, para as livrarias de auto –ajuda, em que o inferno está dentro de nós, até que venhamos a cuspi-lo na cara dos outros.
Não temos por que nos sentir obrigados a escolher entre um ou outro desses cacoetes mentais, tentaremos apenas jogar fora a “chave dos loucos” e tentar viver outras felicidades menos tolas e infelizes.

sexta-feira, 24 de agosto de 2007

E de Novo as Mulheres...

Ultimamente tenho pensado muito sobre a condição feminina, como venho escrevendo aqui. E essa condição pode ser vista em dezenas de filmes considerados recentes como: "Meninos não Choram", "Casa de Areia e Névoa", "Por um Sentido na Vida", "Garota, Interrompida", "Volver" e "Gia", para citar apenas alguns.

O que tenho percebido é que não existe a “mulher”. Existem mulheres. Existem histórias de mulher.

O modo como a sociedade se expressa é uma resultante direta de sua estrutura e ideologia. A maneira como a sociedade vê suas mulheres também está intimamente associada ao modo pelo qual expressa sua masculinidade. Onde as mulheres são severamente limitadas, ou até oprimidas, há também, com probabilidade, o culto da pederastia como parte do tecido social. Considere-se o papel muito restrito que as mulheres tinham nas sociedades celtas, onde eram tratadas como se fossem quase subumanas, e veremos o culto do amor entre os machos guerreiros, da fraternidade masculina e do ritual de pederastia com os adolescentes. A Grécia clássica é, naturalmente, o grande exemplo: as mulheres ficavam confinadas em seus aposentos e não eram bem vistas em público (a menos que fossem cortesãs inteligentes); e os meninos eram idealizados como os grandes objetos de amor. Nessas sociedades, ser passivo na relação era ser motivo de desprezo; isso era aprovado somente para meninos e mulheres, e entre os homens mais velhos tornava-se motivo de sátiras e piadas vulgares, situação que ainda perdura.

O homem que permitisse ser usado como mulher estava rebaixando a idéia de masculinidade. O socialmente aprovado era uma forma de fascismo sexual, já que o parceiro superior assumia a iniciativa e somente ele podia iniciar um ato sexual e penetrar o corpo do parceiro, numa situação que não existia reciprocidade social nem sexual. Nessas sociedades falocêntricas e despóticas, o sistema político engendrava a forma sexual. A hipótese de que as estruturas políticas moldam a sexualidade se torna mais forte quando se olha para outras sociedades.

Nossa cultura deixa aos poucos de se referir a valores simbólicos, exalta a autonomia do indivíduo, mas, paradoxo previsível, chora sobre os belos tempos das certezas perdidas e conclama com razão, que faltam critérios éticos. A época que vivemos oferece duas opções substitutas: em vez de critérios, encontramos imagens positivas ou negativas de homens e mulheres com os quais é recomendado se identificar ou não. E, em vez de sabedorias tradicionais, encontramos autoridade do que é apresentado como a irresistível evidência do real, biológico, químico, anatômico e, por conseqüência, científico.

É como se houvesse um manual ou guia para a felicidade, mas não há, e estes filmes contam histórias de algumas mulheres, de alguns abandonos, de faltas, de carências. Contam histórias de seres humanos, sem se preocuparem em rotular a pessoa da história, isso, o cinema deixa para a sociedade que o assiste.


quinta-feira, 16 de agosto de 2007

As Terras Estrangeiras de Sofia Coppola

A diretora norte-americana Sofia Coppola dirigiu três filmes: "As Virgens Suicidas" em 2000, "Encontros e Desencontros" em 2003 e "Maria Antonieta" em 2006. São filmes bem distintos e ao mesmo tempo parecidíssimos na temática.
O olhar de Coppola é um olhar feminino sobre as mulheres e sobre o mundo caótico e vazio que elas pertencem. Maria Antonieta, a última rainha da França é lembrada fortemente por ter sugerido ao povo faminto francês que comesse brioches, já que não havia pão, e por conta de desatinos como esse, teve a cabeça decepada pela guilhotina na Revolução Francesa, mas parece que tais fatos não são importantes para a diretora, que não os mencionam. Sua lente registra a menina/mulher antes da delfina/rainha. Maria Antonieta, austríaca, saiu de casa e se casou aos 15 anos com o delfim francês que se negava a ter relações sexuais com a esposa e acabou numa vida de festas, intrigas e luxúrias da corte francesa. Sua vida luxuosa e dispendiosa é mostrada com suprema perícia por Sofia, assim como sua completa alienação em relação aos problemas do povo e das implicações políticas de seus atos. Mas é uma visão acima de tudo, simplesmente humana. Assim também é retratada Charlotte de "Encontros e Desencontros", tão humanizada perante seus medos e seus vazios existenciais. Charlotte está perdida na cidade de Tokyo, mas não essencialmente perdida no idioma, mas em si mesma; Ela poderia estar em qualquer lugar do mundo e continuaria perdida.
As virgens moram em casa com os pais, num ambiente que supostamente deveria ser aconchegante e acolhedor, mas acabam se matando. Embora recebam uma educação ultra-conservadora, seus pais, contudo, são pessoas que achamos aos montes em qualquer lugar do mundo. Coppola não quer estabelecer uma identificação mais profunda do espectador com o cotidiano das meninas, porque seu drama é observado à distância, por quatro rapazes da vizinhança. É como se ela quisesse lembrar que não está julgando fatos, apenas descrevendo vidas. Perene em seus filmes, existe a urgência em compartilhar suas histórias, que são nossas histórias, algo raro nos dias de hoje, cuja única urgência dos filmes é aliviar a carteira de otários.
O olhar feminino é um olhar raro no cinema. Mais raro ainda é encontrar nesse olhar um carinho autêntico pela condição humana, que valoriza as questões do segundo sexo sem os excessos do feminismo raivoso, colocando a mulher no centro do universo sem atirar o homem num subúrbio mal-cheiroso.
Sofia Coppola só (só??) transporta para a tela o estrangeiro que vive em cada um de nós.

"Meu corpo é um estrangeiro a quem levo pão e água diariamente". Murilo Mendes.

terça-feira, 14 de agosto de 2007

Carta aberta para L.

Eu não consegui te responder através do telefone, de e-mails, de formas que me fazem ficar ainda mais distante e fria.
Apenas fui educada por muitos anos à ser dessa maneira, quase indiferente, quase triste, quase viva quase morta. Você era e é um turbilhão de sentimentos em minha vida que não sei nomear, que não sei cuidar, e nessa hora todas as teorias, todas as lógicas, todo o racionalismo vão por terra. E essa é a minha defesa, meu mecanismo de proteção, de sobrevivência. Você testa todos estes mecanismos e eu me sinto completamente nua de artifícios.

A Psicologia só me serve para cuidar dos outros e para conhecer minhas limitações, que são tantas, inúmeras, difíceis de aceitar. Peço apenas que compreenda o meu amor desalentado e descuidado, é a única forma de amor que talvez eu consiga dar.

Quando reeli "Pergunte ao Pó", me lembrei da nossa relação tão frágil e ao mesmo tempo tão forte que me permite escrever isso. E mais do que ninguém, você sabe a linha tênue que separa a normalidade da insanidade; eu sou a louca e não você.
Gostar de alguma coisa significa desejar ingeri-la. Nesse sentido, corresponde a uma submissão ao mundo. Gostar de alguma coisa é sucumbir, de modo menor mas satisfeito, à morte. E talvez eu não consiga sucumbir dessa maneira...

Mas se a religião budista tem algo que me conforta é exatamente isso, ela ensina que a não-conexão pode ser uma forma superior de conexão. Quem sabe?

Continue me ligando sempre. É um conforto para minha alma hostil.

terça-feira, 7 de agosto de 2007

Onde está a Mulher?

Estará lá onde possa ser vista por um homem, ou na paixão que leva à morte? Estará nos olhos de ressaca de Capitu, ou naquilo que de mais humano habita o humano? No corpo dissecado na obra de Boujeois? Nos prazeres da abstinência, no silêncio do abismo? Em algo ausente que atormentava Camille Claudel ou estará na mãe de Almodovar? Na força da mulher da favela carioca, ou nos olhos bem fechados de Kubrick?

sexta-feira, 3 de agosto de 2007

Qual é a Coisa e de que são Feitas as Coisas

Volto a falar da autora que me causa comoção.

Que mistérios tem Clarice Lispector? A pergunta vem desafiando escritores, ensaístas e críticos e continua sem resposta vinte e cinco anos após o desaparecimento de uma das mais talentosas e enigmáticas personalidades literárias brasileiras. Cada iniciativa de revisitar seu universo, tão pessoal e ao mesmo tempo tão vasto como cosmovisão, tem o sabor de uma viagem ao fim do mundo.
Contidos no fluxo da consciência e servidos por um texto de crua e vertiginosa poesia estão muitos dos temas caros à escritora: a busca de um Eu fraturado pela descrença na própria identidade; a descoberta de um mundo estranho que dialoga com as esquinas menos conhecidas do ser interior; a consciência de que o ato de ver supera a função dos olhos; o amor pelo abismo de que se é feito. E tais temas são também bastante conhecidos da ciência psicológica que nasceu a partir da crise da subjetividade privatizada: do vazio do humano.
A subjetividade privatizada entra em crise quando se descobre que a liberdade e a diferença são, em grande medida, ilusões, quando se descobre a presença forte, mas sempre disfarçada, das Disciplinas em todas as esferas da vida, inclusive nas mais íntimas e profundas. A crença de que a fraternidade seria possível, ainda que todos defendessem seus interesses particulares, não sobrevivem por muito tempo.
Então, como se fala do nada? Como entrar no nível de percepção de alguém que conseguiu plasmar em palavras, em fluxo de pensamento-coisa, em magma significante circulando por milhares de anos e por detalhes da vida e por linhas que se cruzam, sem confundir, mas clareando, alvejando, esclarecendo? Clarice diz que o acréscimo é mais fácil de amar. Como se fala do anterior ao humano, daquilo que nossa própria constituição aprende a sublimar, em busca do significado para a nossa ocupação do mundo? Como é que se fala da morte? Como é que se fala da vida? Como é que se fala?

"Vivo no quase, no nunca e no sempre. Quase vivo, quase morro. Quase podia me jogar pela janela do meu sétimo andar. Mas não me lanço. Quase adivinho as coisas. Sei muito. E quase não sei. Já estive três dias à beira da morte. E dela guardo a mão direita deformada. Um quase".

quarta-feira, 1 de agosto de 2007

O Homem e o Sexo

Traçar linhas entre comportamento normal e anormal sempre foi uma das grandes e antigas preocupações do ser humano. Mais difícil ainda tem sido justificar o que é correto no sexo. Com o decorrer dos séculos, o próprio padrão de normalidade nessa área vai se modificando. O que já foi considerado como anormal, desviante, aos poucos passou a ser encarado como normal, e o que é considerado diferente é conhecido como anormal. Alguns comportamentos são chamados de desvios e perversões sexuais com cunho pejorativo de nomenclaturas como tara sexual, aberração sexual, psicopatia sexual, sendo que a prática que leva esses nomes recebe a conotação de mera variação sexual. No início do século XX, as explicações tendiam a recorrer às “predisposições constitucionais”, implicando “degeneração” e “taras”. Até mesmo a masturbação recebia esse tipo de classificação. Há muitas maneiras de se encarar o comportamento sexual diferente, perverso, desviante; anormal por ser fora da reprodução (se não for sexo que permita reprodução é anormal); estatisticamente anormal (quando não é comportamento da maioria); normal cultural (quando num determinado grupo, alguns comportamentos são normais, mas fora dele são indesejáveis).

Mas não terminam aí os critérios para se julgar o que é normal ou anormal no sexo. A etologia, por exemplo, leva em conta que o homem é por princípio um animal e o sexo, uma função biológica, o que permite compará-lo aos outros animais e seus comportamentos sexuais. O que acontece naturalmente entre os animais poderá acontecer com o humano sem ser desviante.

As explicações psicológicas para o comportamento desviante tomaram impulso desde o fim do século XIX, com o desenvolvimento de diferentes correntes psicológicas, quando se passou a observar a personalidade do indivíduo e a motivação original do ato perverso. A sexualidade ideal ditada pela Modernidade seria a da pessoa psicologicamente saudável, o contrário é o comportamento sexual desviante. Mas o que seria uma pessoa psicologicamente saudável? E o que as ciências sociais, principalmente a Psicologia têm a dizer sobre a sexualidade? Seria esse tema mais bem tratado pelos saberes que giram em torno do psicológico? O que há de novo e como se configura o campo dos estudos sociológicos sobre sexualidade?

Na área do saber antropológico, por exemplo, a sexualidade não é um objeto de estudo novo ou estranho à tradição disciplinar, ao contrário, existem etnografias clássicas que descrevem práticas sexuais de sociedades ditas primitivas, desde o início deste século. Investigava-se a dimensão da sexualidade, no esforço de conhecer as diferentes modalidades de organização social peculiares a cada grupamento humano. O olhar conferido a tal objeto, contudo, não o privilegiava como um campo de investigação autônomo, com estatuto próprio. Enquanto objeto de estudo, a sexualidade inseria-se no conjunto das regras que regulavam a reprodução biológica e social de uma dada comunidade.

A dissociação entre sexualidade e reprodução biológica da espécie, a partir do desenvolvimento dos métodos contraceptivos hormonais, nos anos 60, e o advento da epidemia da doença AIDS (sigla em inglês para Síndrome da Imunodeficiência Adquirida causada pelo vírus HIV), na década de 80, deram novo impulso às investigações sobre os sistemas de práticas e representações sociais ligados à sexualidade, contribuindo para um campo de investigação em si, dotado de certa legitimidade. Tal particularidade só pode ser entendida no contexto da sociedade ocidental do final do século XX, que elegeu as questões ligadas à intimidade, à vida privada e à sexualidade como centro da reflexão sobre a construção da pessoa moderna. Assim, duas faces compõem a personagem do indivíduo moderno: uma delas refere-se à sua constituição como sujeito político, livre, autônomo, portador de direitos de cidadania e à sua fabricação subjetiva, por múltiplos dispositivos disciplinares, que tornam as experiências do gênero e da sexualidade centrais para a constituição das identidades.

Ressaltando que tal concepção de sujeito é originária de uma determinada percepção cultural, temporal e historicamente marcada, que se espraia nas diferentes sociedades de modo também desigual.
O que é próprio de nossa sociedade não é a condenação do sexo por tabus e interditos a permanecerem na escuridão, do que não é falado, do que não é tratado, mas, sim de ter de falar dele sempre, valorizando-o como um segredo. E qual seria esse segredo? E por que o encobrimento de um assunto que a todos interessam? Um comportamento então visto como inerente ao homem, instintivo, biológico e prazeroso. Por que a dificuldade de lidar com o que desperta o prazer? Muitas perguntas relevantes podem ser feitas a partir de contradições históricas, seria legítimo, perguntar por que durante tanto tempo associa-se sexo ao pecado fazendo associações com o que é condenável, e ainda, hoje em dia nos culpamos por ter outrora feito dele um pecado. Seria, então, a sexualidade condenável e estaríamos pecando por exercer essa sexualidade?

Deve-se falar de sexo e falar publicamente, não julgando o que é lícito ou ilícito. Segundo Foucault: “Cumpre falar de sexo como de uma coisa que não se deve simplesmente condenar ou tolerar, mas, gerir, inserir em sistemas de utilidade, regular para o bem de todos, fazer funcionar segundo um padrão ótimo. O sexo não se julga apenas, administra-se. Sobreleva-se ao poder público; exige procedimentos de gestão, deve ser assumido por discursos analíticos”.