Vamos ao tesouro da sabedoria popular. Conta-se que um louco procurava algo sobre o facho de luz de um poste. Outro louco se aproxima, pergunta o que ele estava procurando e obtém como resposta uma chave! O segundo louco pergunta se ele tem certeza de que perdera a chave naquele lugar. O primeiro diz que não, mas só ali havia bastante luz para que se pudesse ver alguma coisa. O segundo, espantado, diz que o primeiro é louco e propõe que ambos procurem a chave no escuro.
A emenda é tão ruim quanto o soneto. Procurar o que se perdeu no lugar errado, só porque está iluminado, ou no lugar certo, mas onde nada se pode enxergar, são duas saídas insensatas, pois ou nunca encontraremos o que queremos achar, ou, se acharmos, não poderemos reconhecer o que encontramos.
A anedota pode metaforizar, para alguns, a cegueira do destino humano, às voltas com o malogro inelutável da ilusória realização do desejo. Entre o desejo e o objeto existe sempre o empecilho da luz que nada ilumina ou da escuridão que nos impede de reconhecer, quando encontrarmos, aquilo mesmo que estamos procurando. Mas, como disse Henry James, “nosso destino jamais se frustra”. A idéia do insucesso “intrínseco” à natureza do desejo pode ser temperada com uma dose salutar de pragmatismo. Em vez de sucumbir à sedução da impossibilidade, por que não experimentar outra saída? Por exemplo no caso da anedota, por que não pensar em usar uma boa e simples lanterna? É isso que William James dizia, ao evocar o adágio escolástico: “Onde encontrar uma contradição, faça uma distinção”. Feita a distinção, o enigma ganha outra descrição, e, quem sabe, virão a surgir novos fachos de luz, novas lanternas e novos parceiros na busca do que desejamos.
E isso me lembra o filme de Todd Solondz, chamado aqui no Brasil de “Felicidade”, podemos usar da mesma anedota. A impressão que fica, ao assistir ao filme de Todd Solondz, é a de “loucos em busca de uma chave”. O diretor evita, com inteligência, a atitude de palmatória do mundo diante dos personagens. Não se trata de afirmar que os adultos se infantilizaram, que as crianças perderam a infância ou que as famílias de hoje, artificiais como bonecos playmobil, perderam o script do que fazer ou dizer, trata-se de mostrar o novo roteiro social da “felicidade”: a confissão e a autenticidade. Em nome da autenticidade, os indivíduos se sentem autorizados a confessar tudo o que sentem ou pensam, pouco importa o que decorra da confissão.
Á primeira vista, tudo parece uma honesta reação à hipocrisia dos velhos tempos. No novo código moral, toda ocultação é mentira, portanto qualquer sandice dita vale cem sabedorias caladas. De fato, é possível que algo de honesto exista em tudo isso. Mas, entre o compromisso com a verdade e a compulsão da confissão, existe um formidável abismo moral.
No filme, o que sobremaneira constrangedor não é a desenvoltura com que os personagens expõem as fantasias sexuais ou agressivas: é a incapacidade de dizerem “não” à ordem cultural de confessar! Fazer das relações humanas cópias de confessionários religiosos ou divãs de psicoterapias não é ser mais honesto, sincero ou autêntico: é desistir do exercício da autonomia.
Como qualquer forma de consciência de si, a verdade sentimental obtida por confissão se apóia em crenças e regras de conduta que não revelam, de imediato, seus objetivos morais implícitos. Uma dessas crenças é a de que, ao confessarmos o que sentimos, estamos descobrindo algo sobre nós mesmos, até então enterrado pela dissimulação social ou pela covardia emocional. Quem confessa o que sente, mesmo ao preço de sofrimentos, sente o alívio heróico da justa causa. Isso não é nenhuma descoberta, ela apenas inventa uma identidade pessoal que, sem a prática da confissão, deixaria de existir. Assim como a confissão religiosa criava a identidade do pecador, a confissão sentimental cria a identidade do sujeito emocionalmente maduro, essa figura da cultura narcisista.
A verdade dos nossos desejos, impulsos ou inclinações é “mais verdadeira” do que a verdade da sensibilidade à dor e à humilhação do outro. Em uma cena do filme, o aspecto grotesco da cultura da confissão aparece em toda violência: diante do filho, preocupado com os mistérios da sexualidade masculina, o pai não hesita em dizer o que lhe vem à cabeça. A autenticidade de seus sentimentos tem mais valor moral do que a delicadeza para com o sofrimento e a perplexidade afetiva do filho.
Os personagens de “Felicidade” não são maus, perversos ou “seres reprimidos” ávidos por liberação; são, pura e simplesmente, indivíduos inconseqüentes e irresponsáveis, em relação às atitudes morais que reclamam para si. Ou seja, todos querem ser compreendidos, tolerados, perdoados e inocentados no que sentem e dizem, mas nenhum, duvida que a prática da boa vida consiste, exclusivamente, em saber e dizer “quem se é” em matéria de sexo e agressividade.
Passamos da hipocrisia vitoriana, em que o inferno era o outro, para as livrarias de auto –ajuda, em que o inferno está dentro de nós, até que venhamos a cuspi-lo na cara dos outros.
Não temos por que nos sentir obrigados a escolher entre um ou outro desses cacoetes mentais, tentaremos apenas jogar fora a “chave dos loucos” e tentar viver outras felicidades menos tolas e infelizes.